Sim, sempre ateus e descrentes, não há universo senão o real, esse composto de átomos e cenas muito muito pequenas que rodam e correm ou fazem piruetas e mortais encarpados à volta de outras ainda mais minúsculas e todo esse movimento mexe connosco e a nossa convicção de que não há senão um absolutamente nada, também essa se mexe um nadinha.
Está uma rapariga imersa em papéis e assuntos áridos e chatos e aborrecidos e tão cinzentos como as nuvens de um dia de merda e no canto do olho mexe-se qualquer coisa, um bocado de universo, um pássaro em voo, um risco no céu e repara que é azul. Quase incomoda, aquele azul, é como se o universo se estivesse nas tintas (e na verdade está) mas uma pessoa toma isso como uma afronta, só podes estar a gozar, sua besta, estou aqui eu feita de átomos todos tolos a esvoaçar para todos os lados, borboletas tontas com as asas em tiras do esforço e atiras-me assim com uma fatia de perfeição sem aviso nem nada, um céu perfeito sobre todas as coisas mal coladas do mundo, como se nada fosse. Obrigas-me a ver-me a mim, sob uma luz implacável, tão destapada de papéis, não me deixas ser traça que rói cantos, escondida dentro de mangas de lã, obrigas-me a olhar para cima e eu não quero senão olhar para o chão, para os meus pés mergulhados em betão, antes chovesse um dilúvio que me afogasse, antes chovesse um diluvio que talvez me descolasse.
[banda sonora: Bach Cello Suite No. 1 in G Major, BMW 1007: 1. Prélude]